Reforma da CLT flexibiliza regras e restringe direitos dos trabalhadores
Reportagem publicada no Anuário da Justiça do Trabalho 2024, lançado na última quinta-feira (30/11).
Há muito os direitos trabalhistas no Brasil são rotulados como obstáculos para o desenvolvimento do país. Encargos trabalhistas são historicamente colocados na prateleira dos entraves para o crescimento econômico e a geração de emprego, contribuindo em boa parte o chamado “custo Brasil”.
Ainda assim, os direitos dos trabalhadores passaram intocados pelas últimas décadas, enquanto o país virava a página da ditadura militar, consolidava direitos sociais com a Constituição Federal de 1988, estabilizava a economia com o Plano Real e iniciava a redução da desigualdade social com políticas públicas de distribuição de renda e de promoção social. Esse cenário se reverteu. Mudanças estruturais como a revolução tecnológica, a globalização da produção de bens e serviços, o processo de desindustrialização global, que atingiu também o Brasil, acabaram por reconfigurar o mundo do trabalho de modo geral, afetando seu modo de se relacionar com o capital.
Em 2017, as crises política e econômica elevaram a taxa de desemprego a 13,9% e criaram o ambiente propício para lançar mudanças na CLT. Foi nesse contexto que a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) impulsionada pelo governo de Michel Temer foi aprovada pelo Congresso Nacional e entrou em vigor em 11 de novembro de 2017. Vendida sob o verniz da “modernização”, prometia reduzir o custo do trabalho ainda que ao preço de restringir direitos dos trabalhadores.
Dentre os mais de 100 artigos alterados, revogados ou criados na CLT, a medula da reforma é resumida em três profundas alterações na carta de emancipação econômica dos trabalhadores: prevalência do negociado sobre o legislado; fim da obrigatoriedade da contribuição sindical; e a criação de normas que impactaram na busca pela Justiça do Trabalho.
Negociado x legislado
O conceito do negociado sobre o legislado permitiu que acordos individuais, convenções ou acordos coletivos se sobreponham à lei no que diz respeito a várias questões, como jornada de trabalho, intervalo de almoço, plano de cargos e salários; participação nos lucros (todos previstos no artigo 611-A da CLT); horas extras, banco de horas; jornada 12×36 (artigos 59 e 59-A); parcelamento do período de férias (artigo 134, parágrafo 1º); e rescisão em comum acordo (artigo 484-A).
Vice-presidente do TRT-12 (Santa Catarina), Wanderley Godoy Junior acredita que a flexibilização das regras era necessária para amparar as especificidades do mercado. “Empregado e empregador, através de seus sindicatos, podem decidir questões que envolvem apenas determinado setor, em vez de se aplicar a regra geral da CLT. Um motorista não pode ter as mesmas regras que um empregado do comércio ou de um jogador de futebol, por exemplo.”
Em junho de 2022, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional, com repercussão geral, normas previstas em acordos coletivos que restrinjam ou limitem direitos trabalhistas, com exceção dos previstos na Constituição (Tema 1.046). No Tribunal Superior do Trabalho, empresas têm conseguido reverter decisões dos TRTs que negaram a validação das negociações coletivas. A jurisprudência fixada no TST, porém, é a de que as novas normas só devem ser aplicadas nos casos posteriores à data de vigência da Reforma Trabalhista (11 de novembro de 2017). O entendimento de que as normas criadas pela reforma só têm prevalência sobre casos posteriores à lei tem sido estendido na análise de recursos envolvendo tanto questões de direito processual quanto de direito material, como parcelamento de férias e honorários sucumbenciais.
Fim da contribuição sindical
Se, por um lado, a reforma deu voz às negociações coletivas no âmbito jurídico, por outro, o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical atingiu a principal fonte de receita dos sindicatos e, consequentemente, a sobrevivência de entidades que canalizam o poder de negociação com o patronato e a mobilização dos trabalhadores.
“A organização dos trabalhadores em sindicatos permite a negociação de condições laborais em situação de paridade em relação ao empregador, imprimindo concretude ao princípio da proteção do empregado. Acordos e convenções coletivas são instrumentos eficazes de garantia de direitos que, amparados pelo princípio da boa-fé objetiva e pela força do ente sindical, podem refletir de forma mais adequada às necessidades e realidades específicas de determinadas categorias ou setores econômicos”, frisou a ministra Cristina Peduzzi, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, em entrevista ao Anuário da Justiça do Trabalho.
Em setembro de 2023, ao julgar Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Extraordinário 1.018.459, o STF validou o desconto compulsório da contribuição assistencial sindical, desde que decidida em convenção coletiva dos trabalhadores, dando ao trabalhador o direito de se opor (expressamente) ao desconto. Mudou, assim, o entendimento firmado no julgamento do agravo, em 2017, quando entendeu ser constitucional o fim do imposto sindical determinado pela reforma.
A mudança não é apenas retórica. “O governo nem cogita o retorno do imposto sindical, mas precisamos reconhecer que o sindicato precisa de recursos para que possa exercer uma boa representação. Isso porque, quando um sindicato fecha um acordo benéfico, trabalhadores associados e não associados são beneficiados”, declarou o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, durante audiência pública no Senado.
Honorários sucumbenciais
A reforma trabalhista introduziu na CLT os artigos 790-B e 791-A, que previam que a parte que perder a ação deveria pagar os honorários periciais e de sucumbência de 5% a 15% sobre o valor em discussão. Inicialmente, a redação estabelecia que, caso a parte vencida fosse hipossuficiente, os valores poderiam ser descontados de créditos obtidos na mesma ou em outra ação.
Ao julgar a ADI 5.766, em 2021, o STF invalidou trechos dos artigos que não poupavam os beneficiários da Justiça gratuita. Por maioria de votos, o Supremo concordou com a tese da Procuradoria-Geral da República de que as normas violavam as garantias processuais e o direito fundamental dos trabalhadores pobres à gratuidade para acesso à Justiça. Com a inconstitucionalidade parcial, ficou mantida a previsão de que, caso a parte vencida seja beneficiária da Justiça gratuita, os honorários poderão ser executados se, nos dois anos seguintes, o credor provar que a situação de insuficiência de recursos se reverteu.
Foi com base no entendimento firmado pelo STF que, em outubro de 2022, a 5ª Turma do TST decidiu que os honorários devidos por uma auxiliar de cozinha no âmbito de uma ação perdida parcialmente ficam suspensos pelo período de dois anos e só serão executados se a empresa credora provar, dentro desse período, que ela tem condições de cumprir a obrigação. Os créditos obtidos pelo deferimento parcial da reclamação não puderam ser descontados.
O impacto da Reforma Trabalhista na busca pela Justiça do Trabalho ainda não está claro. De 2017, último ano antes da reforma, para 2018, primeiro ano de vigência das novas regras, o número de processos recebidos nas varas de Trabalho caiu 34%: saiu de 2,6 milhões em 2017 para 1,7 milhão no ano seguinte, segundo dados do Relatório Geral da Justiça do Trabalho de 2022. A partir de 2020, contudo, a curva voltou a apontar para cima e cresceu 12% em dois anos.
Trabalho intermitente
A reforma trabalhista também criou o trabalho intermitente (artigo 452-A, CLT), formato em que o profissional possui vínculo empregatício, mas só é remunerado pelo período em que for convocado para trabalhar, recebendo por horas ou diárias, um similar do trabalho zero hora, existente na Inglaterra. Há uma corrente que defende que o novo dispositivo apenas passou a amparar legalmente a informalidade (trabalhos temporários, os chamados bicos) que já existia no mundo laboral, mas que estava à margem da legislação. Para os críticos da reforma, porém, esses trabalhadores continuam desamparados, já que direitos como 13º, férias, FGTS e INSS são pagos e recolhidos proporcionalmente.
Como não há garantias da periodicidade dos trabalhos, há risco de o trabalhador ter de complementar sua contribuição previdenciária, por exemplo. “Não padecem muitas dúvidas sobre o caráter altamente precarizador do trabalho intermitente. A polêmica em torno de sua criação no Brasil e de sua aplicação é extensa e envolve muitos pontos interessantes. O mais grave e lamentável, repita-se: esse trabalhador nada receberá e, consequentemente, não haverá recolhimento para a Previdência Social (o que impactará nos seus direitos previdenciários), nem na sua conta vinculada de FGTS (o que repercutirá no seu futuro). Precariza-se grandemente o trabalho humano com essa disposição, ainda que se considere que o trabalhador possa prestar serviços a outros contratantes”, defendeu o desembargador Georgenor de Sousa Franco Filho, da 8ª Região (Pará e Amapá), em artigo publicado na revista eletrônica do TRT-9 (Paraná).
Fonte: Conjur