Privilégios da elite religiosa

Privilégios da elite religiosa

Entre as muitas medidas populistas ou eleitoreiras implementadas pelo ex-presidente para tentar garantir a reeleição estava, justamente, a que ampliava a isenção de impostos para os rendimentos recebidos por pastores, ministros de confissões religiosas, integrantes de instituto de vida consagrada, congregação ou ordem que não estabelecessem vínculo empregatício (explícito) com suas entidades. A ação visava, às vésperas da eleição, conquistar mais apoio de lideranças e, eventualmente, votos entre a população religiosa. Sim, Bolsonaro pretendia facilitar a circulação de recursos financeiros dentro das atividades de cunho religioso para, quem sabe, os “pastores” o ajudarem a continuar “passando a boiada” sobre o Brasil.

Além do aceno às elites religiosas e aos grandes empresários de conglomerados religiosos, a medida se tornou um mecanismo para que as instituições relativizassem a cobrança de dívidas previdenciárias milionárias. Ao caracterizarem os recursos financeiros pagos aos pastores ou lideranças religiosas como uma espécie de prebenda — remuneração especial em razão do “mister religioso ou para subsistência” —, e não como salário, as instituições estariam livres de responsabilidades trabalhistas e previdenciárias sobre o rendimento de seus trabalhadores.

Com o propósito de oferecer à sociedade brasileira não religiosa um extrato do problema ético e político e do desafio social e trabalhista implicados nessa questão, destaco: milhares e milhares de pastores e pastoras se dedicam espiritual, afetiva e profissionalmente às denominações religiosas no Brasil. Embora exista uma elite pastoral-religiosa milionária, que esbanja prosperidade à custa de empreendimentos baseados na fé e na espiritualidade (idiossincrasia assustadora de nossos tempos neoliberais), a imensa maioria dos que trabalham em espaços religiosos é pobre, periférica e preta. Recebem salários precários e sofrem altíssima vulnerabilidade social pela dedicação honesta ao ministério. Há divisão de classe e desigualdade de renda (e de níveis de seguridade e proteção social) absurdas dentro da religião no Brasil. A multidão de trabalhadores pobres — que vivem para servir dignamente às atividades espirituais de suas tradições — ficará cada vez mais desprotegida, precarizada e vulnerabilizada se não encontrarmos formas republicanas e democráticas de responsabilizar as instituições religiosas para que garantam direitos trabalhistas e previdenciários de seus trabalhadores. O que temos hoje no Brasil, por analogia, é uma espécie de uberização do trabalho vocacional intrarreligioso.

Bolsonaro fez de tudo para se manter no cargo. Ainda assim, foi o único presidente da História recente a não conseguir se reeleger. Porém sua irresponsabilidade deixou um rombo grave na economia e uma ferida dolorosa nas espiritualidades brasileiras. É parte dessa devastação que a Receita Federal está querendo reverter com a decisão do dia 17. A outra parte é conosco, gente de fé que não aceita mais ver sua espiritualidade aparelhada pelo abuso de poder e gente democrática que gostaria de ver a democracia e a diversidade brasileiras triunfando sobre o fascismo. Vamos reconstruir o Brasil. O caos já passou.

*Henrique Vieira é pastor e deputado federal (PSOL-RJ)

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