Políticas compensatórias não substituem a dignidade do emprego remunerado

Políticas compensatórias não substituem a dignidade do emprego remunerado

Por cin­quenta anos, da dé­cada de 1930 até início da de 1980, o PIB na­ci­onal cresceu em média 6,5% ao ano. Al­gumas ca­rac­te­rís­ticas desse tempo podem ser ci­tadas exem­pli­fi­ca­ti­va­mente: maior nú­mero de bancos au­to­ri­zados a fun­ci­onar no ter­ri­tório na­ci­onal; cré­dito mais ba­rato; juros baixos; ine­xis­tência de ín­dices ofi­ciais de cor­reção mo­ne­tária; cres­ci­mento da in­dús­tria e co­mércio; edu­cação pú­blica pri­mária e pro­fis­si­o­na­li­zante de qua­li­dade; se­gu­rança pú­blica em ra­zoável fun­ci­o­na­li­dade; de­sem­prego pra­ti­ca­mente ine­xis­tente, tanto que ainda era pos­sível punir a con­tra­venção da va­di­agem.

Já os pri­meiros anos da im­plan­tação no ne­o­li­be­ra­lismo econô­mico, de 1995 a 2010, o PIB do país cresceu cerca de 2% em média ao ano e, agora, na úl­tima dé­cada, zero mesmo.

Como a po­pu­lação do país, no pe­ríodo, cresceu em média 1% ao ano, logo se vê que o cres­ci­mento econô­mico na­ci­onal não apre­sentou a menor con­dição de su­portar as ne­ces­si­dades bá­sicas da po­pu­lação.

Em­bora no­to­ri­a­mente no­civo aos in­te­resses do país, esse mo­delo econô­mico man­teve-se em todos os go­vernos a partir de 1995, in­de­pen­den­te­mente das di­fe­renças ide­o­ló­gicas pro­pa­ladas por cada um deles e de seus par­tidos po­lí­ticos.
Es­tranho, mas com­pre­en­sível.

É que quem manda são os mai­ores bancos in­ter­na­ci­o­nais, ali­men­ta­dores das oli­gar­quias in­ves­ti­doras do mer­cado global, in­te­res­sadas em manter os países sub­de­sen­vol­vidos e emer­gentes onde sempre es­ti­veram, na eterna po­sição de es­cra­vi­zados.

É evi­dente que al­guns países emer­gentes es­ca­param dessa ar­ma­dilha e hoje estão par­ti­ci­pando das de­li­be­ra­ções re­la­tivas ao des­tino da ge­o­po­lí­tica do pla­neta, como os gi­gantes asiá­ticos. Não qui­seram se sub­meter ao FMI e à car­tilha di­tada pelo fa­moso Con­senso de Washington, de 1989.

Não custa fazer um re­sumo dessa car­tilha las­ti­ma­vel­mente aceita pelo Brasil. Mas é pre­ciso chamar a atenção do ob­ser­vador para o fato de que tais re­co­men­da­ções, em­bora bem-in­ten­ci­o­nadas na apa­rência, es­condem na ver­dade ar­ma­di­lhas nada ci­vi­li­zadas e muito menos éticas.

A pri­meira re­co­men­dação diz res­peito à dis­ci­plina fiscal, com cen­sura aos grandes dé­fi­cits fis­cais em re­lação ao PIB. A pre­missa é elo­giável, mas a con­clusão é cen­su­rável. É que essa car­tilha manda ex­cluir do con­trole fiscal o pa­ga­mento de juros ban­cá­rios e ser­viço da dí­vida cor­res­pon­dente. Jus­ta­mente por essa razão, in­cluiu-se a regra na Lei de Res­pon­sa­bi­li­dade Fiscal bra­si­leira. Com isso, 50% do or­ça­mento pú­blico na­ci­onal é des­ti­nado aos ban­queiros.

A se­gunda re­co­men­dação seria o re­or­de­na­mento das pri­o­ri­dades dos gastos pú­blicos. O dis­curso também aí é con­vin­cente. O Es­tado de­veria gastar mais com o cres­ci­mento da eco­nomia e com os po­bres, des­ti­nando pri­o­ri­ta­ri­a­mente seus re­cursos com o in­ves­ti­mento em in­fra­es­tru­tura. Bo­nito dis­curso, não? To­davia, dita in­fra­es­tru­tura, em sua de­fi­nição, seria cons­ti­tuída de usinas hi­dre­lé­tricas, es­tradas, pontes e al­te­ra­ções de cursos flu­viais, não em be­ne­fício da po­pu­lação, mas para fa­vo­recer a mi­ne­ração e o mega-agro­ne­gócio. Água, luz elé­trica, trans­porte co­le­tivo e sa­ne­a­mento bá­sico sempre ficam para de­pois.

A ter­ceira seria a re­forma tri­bu­tária, para a re­dução da carga de im­postos. No nú­cleo dessa fi­lo­sofia, con­tudo, está a te­oria do Es­tado-mí­nimo, visto que, com uma ar­re­ca­dação cada vez menor, na­tural que o Es­tado também fique cada vez menor.

A quarta de­fende a livre de­fi­nição das taxas de juros pelo mer­cado. Ocorre, en­tre­tanto, que quanto menor o Es­tado mais de­pen­derá ele do so­corro dos bancos que, assim, po­derão lhe co­brar os juros que qui­serem.

A quinta de­fende o mesmo para as taxas de câmbio. Sem margem para in­ter­ferir nas taxas de juros e câmbio, o Es­tado se torna refém dos in­va­riá­veis “donos do mundo”, pois acaba por perder im­por­tante ins­tru­mento de po­lí­tica mo­ne­tária.

A sexta propõe o livre co­mércio, com li­be­ração das im­por­ta­ções, e sem pro­te­ci­o­nismos. A sé­tima su­gere a li­be­ra­li­zação do in­ves­ti­mento es­tran­geiro e a oi­tava a pri­va­ti­zação de todas as em­presas es­ta­tais. Estas três úl­timas estão vi­si­vel­mente im­bri­cadas, pois têm o ob­je­tivo de manter o do­mínio das na­ções mais ricas sobre as mais po­bres. Ocorre que, na eco­nomia de es­cala e de com­pe­tição, os po­bres sempre perdem para os ricos.

Ne­ces­sário ob­servar, em re­lação à re­co­men­dação de pri­va­tizar as es­ta­tais, que al­gumas das ati­vi­dades econô­micas re­le­vantes para a po­pu­lação só pas­saram a ser ex­plo­radas pelo Es­tado por au­sência de em­pre­sá­rios que se sub­me­tessem aos riscos na­tu­rais dos ne­gó­cios, de modo que chega a ser então imoral de­fender a pri­va­ti­zação sem cri­tério após eli­mi­nados os riscos e só de­pois de tais ati­vi­dades pas­sarem a ser lu­cra­tivas.

Não se pode es­quecer que em­presas es­ta­tais foram cons­truídas com a ar­re­ca­dação de tri­butos in­ci­dentes sobre o sa­cri­fício po­pular. Cuida-se de pa­trimônio pú­blico. Se são lu­cra­tivas, devem con­ti­nuar dis­tri­buindo di­vi­dendos ao povo e não um pe­queno grupo de oli­garcas.

A des­re­gu­la­men­tação da eco­nomia, que seria a nona re­co­men­dação, tinha a fi­na­li­dade de co­locar uma pá de cal sobre qual­quer ten­ta­tiva de in­ter­venção es­tatal na ati­vi­dade econô­mica.

Na re­a­li­dade, con­tudo, é mais um ins­tru­mento de ma­nu­tenção do status quo, até com um re­tro­cesso ci­vi­li­za­tório, pois os con­flitos voltam a ser re­sol­vidos pela força e não mais pela ética, num salve-se quem puder.

Por fim, a dé­cima re­co­men­dação da in­di­gi­tada car­tilha pro­pa­gava a ne­ces­si­dade de pro­teção de di­reitos au­to­rais. Mas a ver­da­deira in­tenção nunca foi a pre­ser­vação do ar­tista, do com­po­sitor, do in­ventor, do pes­qui­sador ci­en­tí­fico, do autor da obra li­te­rária. É que, como se sabe, sem a rara trans­fe­rência tec­no­ló­gica, a partir do livre co­mércio, os países emer­gentes não con­se­guem acesso ao co­nhe­ci­mento des­ti­nado à pro­dução de bens e ser­viços de maior valor no mer­cado mun­dial. E é assim que as coisas devem ficar. Aí está o oculto ob­je­tivo.

Evi­dente que o poder econô­mico, livre de qual­quer con­trole do Es­tado (cada vez mais mí­nimo), produz um re­gime sel­vagem nas re­la­ções hu­manas. E é certo que não so­bre­vi­veria sem se­veras crí­ticas da so­ci­e­dade civil, mesmo se­ri­a­mente com­pro­me­tida com a des­truição do en­sino pú­blico, da se­gu­rança pú­blica, saúde e sa­ne­a­mento bá­sico.

Or­ga­nismos so­ciais frag­men­tados, mas bem-or­ga­ni­zados, como os sin­di­catos e mo­vi­mentos po­pu­lares de sem-teto e sem-terra é que pro­du­ziram os mais fortes e efi­cazes pro­testos contra esse mo­delo econô­mico fa­dado ao in­su­cesso, se con­si­de­rada a longa re­cessão que vem cau­sando.

To­davia, por puro in­te­resse ma­te­rial, tei­mosia ou vai­dade, os de­fen­sores dessa de­sas­trosa fór­mula de po­lí­tica econô­mica não re­co­nhe­ceram o erro, numa in­di­cação de que não se cuidou de equí­voco in­vo­lun­tário, mas pro­po­sital.

Pre­fe­riram mu­tilar os sin­di­catos com a ani­qui­lação de mo­vi­mentos gre­vistas, e o fi­zeram da pior ma­neira pos­sível. Su­pri­miram di­reitos tra­ba­lhistas es­ta­be­le­cidos em con­ven­ções in­ter­na­ci­o­nais e cri­aram a hu­mi­lhante fila do de­sem­prego.

Deu no que deu e a fome ge­ne­ra­li­zada chegou. Mi­lhões de ve­lhos e jo­vens de­sem­pre­gados. Mi­lhões de cri­anças sem ali­men­tação su­fi­ci­ente e grande nú­mero delas nas ruas, ao de­sa­brigo.

Nada que essa li­ber­ti­nagem econô­mica dos bi­li­o­ná­rios não pu­desse re­solver, so­bre­tudo quando o Es­tado já está muito mí­nimo. Os de­vo­tados eco­no­mistas da ci­tada te­oria, então, in­vo­caram a pri­meira re­co­men­dação da­quela reu­nião de Washington para daí de­fen­derem o re­or­de­na­mento das pri­o­ri­dades dos gastos pú­blicos. A nova ordem passou a ser a im­ple­men­tação das in­dis­pen­sá­veis po­lí­ticas com­pen­sa­tó­rias, através do as­sis­ten­ci­a­lismo da bolsa-fa­mília e ou­tros cala-bocas da es­pécie.

Acon­tece que ne­nhum be­ne­fício as­sis­ten­cial subs­titui a ocu­pação pro­fis­si­onal dig­na­mente re­mu­ne­rada.

Se­gundo Aris­tó­teles, aliás, quase todos os seres hu­manos con­tentam-se em so­bre­viver re­pe­tindo o que os ou­tros sempre fi­zeram ou fazem, desde que não com­pro­me­tida a sua dig­ni­dade.

O que de­seja qual­quer ser hu­mano é ser con­si­de­rado por outro ou por todos os ou­tros da es­pécie como um in­di­víduo igual. Sem esse sen­ti­mento de igual­dade, nin­guém con­segue al­cançar sua pró­pria dig­ni­dade.

Pre­cisa o ser hu­mano re­co­nhecer-se exis­tente em sua in­di­vi­du­a­li­dade e útil em sua co­mu­ni­dade. Não é por outra razão que pro­cura pro­teger in­ces­san­te­mente sua re­pu­tação, como fonte de energia vital. E para a afe­rição de sua função so­cial, uti­li­dade e im­por­tância frente à co­le­ti­vi­dade, ob­serva per­ma­nen­te­mente a forma com que cos­tuma ser por ela tra­tado.

Es­pera a in­te­li­gência média que, para a ma­nu­tenção da dig­ni­dade hu­mana, a so­ci­e­dade deve atri­buir a cada um e a todos os seus in­te­grantes o mesmo grau de opor­tu­ni­dades, ônus e be­ne­fí­cios.

Tro­cando em miúdos, ne­nhum ser hu­mano quer se sentir in­vi­sível. E a in­di­fe­rença da so­ci­e­dade sempre acar­retou e con­ti­nuará a acar­retar a ine­vi­tável re­volta dos des­pre­zados.

Não é sem mo­tivo que, com o cres­ci­mento do de­sem­prego na re­gião me­tro­po­li­tana de São Paulo, que chegou a 20% em 1997 e 1998, tornou-se vi­sível a ex­pansão do trá­fico de armas e drogas e o for­ta­le­ci­mento das or­ga­ni­za­ções cri­mi­nosas, com a cha­mada vi­o­lência de rua des­cam­bando para a bar­bárie. E as coisas tendem a pi­orar se a so­ci­e­dade não pro­clamar como pri­o­ri­dade de suas pri­o­ri­dades a ins­ti­tuição de po­lí­ticas pú­blicas e so­ciais cri­a­doras do de­no­mi­nado pleno em­prego, so­bre­tudo para os mais jo­vens, em fase de for­mação de cons­ci­ência po­lí­tica e na­tu­ral­mente na justa busca de pers­pec­tivas de vida.

A pro­pó­sito, a Eu­ropa in­teira vem cons­ta­tando que seus jo­vens de­sem­pre­gados, des­pre­zados e in­vi­sí­veis, em grande nú­mero, estão par­tindo na atu­a­li­dade para seitas ra­di­cais pro­pa­ga­doras do ter­ro­rismo. E esse dano ir­re­pa­rável po­deria ser evi­tado.

O certo é que não podem os go­ver­nantes con­ti­nuar com o dis­curso de que o em­prego do ci­dadão é uma con­cessão ge­ne­rosa do mer­cado, pois é do Es­tado, sob pena de não jus­ti­ficar sua exis­tência, o dever de ga­rantir ao seu cons­ti­tuinte a ci­da­dania, a dig­ni­dade e os va­lores so­ciais do tra­balho (CF, art.1º, II, III e IV). E o in­di­víduo não terá ci­da­dania e dig­ni­dade senão através da pres­tação de tra­balho útil à so­ci­e­dade de­vi­da­mente re­mu­ne­rado.

Não custa acres­centar que é do Es­tado de­mo­crá­tico de di­reito a obri­gação de ga­rantir ao ci­dadão a vida, a li­ber­dade e a igual­dade (CF, art.5º). E o ci­dadão não terá como so­bre­viver sem uma ocu­pação re­mu­ne­rada. Não terá li­ber­dade sem o mí­nimo de in­de­pen­dência econô­mico-fi­nan­ceira. E não terá a igual­dade a que se re­feriu an­te­ri­or­mente, pois ela ja­mais exis­tirá para um ser hu­mano ví­tima do des­prezo so­cial.

Já passou da hora, por­tanto, de o go­verno bra­si­leiro aban­donar a vi­gente po­lí­tica econô­mica e, sem mais de­mora, cum­prir o seu dever cons­ti­tu­ci­onal de re­co­locar o Es­tado no ta­manho das ne­ces­si­dades po­pu­lares, as­se­gu­rando a tão pro­cu­rada opor­tu­ni­dade de tra­balho a todos os ci­da­dãos.

Airton Florn­tino de Barros é ad­vo­gado e pro­fessor de di­reito em­pre­sa­rial. Fun­dador e ex-pre­si­dente do Mo­vi­mento pelo Mi­nis­tério Pú­blico De­mo­crá­tico.

Fonte: Correio da Cidadania

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