Opinião - Arminio Fraga: Ser rico não é pecado, mas...
No artigo "Ser rico não é pecado", publicado nesta Folha no dia 3 de setembro, João Camargo criticou duramente a proposta de reforma da tributação do capital apresentada pelo ministro Fernando Haddad. O texto é exuberante, mas parte de premissas equivocadas. O autor confunde um imposto sobre a riqueza com um sobre a renda do capital. A diferença é importante, pois um imposto sobre a renda do capital depende de o capital ter gerado renda. Importa também a calibragem da alíquota de cada imposto.
É verdade que vários países europeus vêm abandonando o imposto sobre grandes fortunas, para estancar um processo de fuga de capitais, mas isso não é o que está em discussão aqui.
No Brasil, os mais ricos têm mecanismos que permitem reduzir substancialmente o imposto que pagam sobre suas rendas do capital e do trabalho, de acordo com as regras básicas do IRPF (Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas). Como consequência, quando se leva em conta as outras formas de tributação, que espero em breve se consolidem em um IVA moderno, a carga tributária que incide sobre os mais pobres é maior do que a carga que incide sobre o 1% mais rico. Isso mesmo.
Há alguns anos, Angus Deaton, Prêmio Nobel, professor da Universidade Princeton e grande especialista no tema, com o bom senso que é a sua marca, me recomendou pensar em um necessário ajuste fiscal começando pelas maiores distorções do sistema. Penso que é justamente o que está sendo apresentado por Haddad. Não se trata, portanto, de um salto para um sistema progressivo.
No que tange à renda do capital, são duas as propostas: 1 - mudar as regras dos fundos exclusivos fechados, que permitem que pessoas com patrimônio elevado criem seu próprio fundo e posterguem "ad infinitum" o imposto sobre seus ganhos; e 2 - modificar as regras de tributação de investimentos no exterior, que analogamente permitem diferir o pagamento do imposto até uma eventual repatriação dos recursos. Como defende o governo, não há razão para diferenciar o tratamento tributário dos dois casos.
Quanto ao imposto sobre a renda do trabalho, urge uma revisão dos elevados limites de faturamento para empresas que optam por pagar o seu imposto sobre a renda (IRPJ) através dos regimes especiais do Simples e do lucro presumido. Por exemplo, um profissional liberal que ganha até R$ 4,8 milhões por ano pode (se tiver custos relativamente baixos) criar uma empresa e pagar uma alíquota efetiva de um dígito sobre a sua renda!
Essa benesse está relacionada à isenção do imposto sobre dividendos para pessoas físicas (IRPF) em vigência no nosso país. Tal isenção não significa que o capital não seja tributado, pois empresas pagam impostos. As que não se beneficiam dos regimes especiais estão sujeitas a uma alíquota de 34%. Uma revisão das alíquotas que incidem sobre empresas e sobre dividendos está em pauta mundo afora —devemos fazer o mesmo aqui.
Sou da opinião de que, enquanto perdurarem esses tipos de brechas tributárias regressivas, qualquer proposta de ajuste fiscal vai carecer de autoridade moral para quem a propuser. Não é justo onerar os mais vulneráveis para beneficiar os mais ricos.
A meu ver, as alíquotas propostas pelo governo e uma eventual correção dos regimes especiais do IRPJ não levarão a uma relevante fuga de capitais do país. Tal comportamento depende de um conjunto mais amplo de variáveis que influenciam os padrões de risco e retorno na economia. Dentre elas destacaria a qualidade e previsibilidade das instituições do país —econômicas, políticas e outras—, que são a fonte mais relevante dos prêmios de risco que engordam as taxas de juros.
As pressões para a preservação de todos esses aspectos altamente regressivos das regras do Imposto de Renda vão persistir, mas devem ser tratadas de forma transparente e objetiva para que não perdurem as iniquidades que hoje caracterizam o nosso sistema. Ser rico não dá direito à moleza que existe no Brasil.
Armínio Fraga
Fonte: Folha Uol