O estelionato silencioso: por que tributar os ricos não salvará os serviços públicos?

De boas intenções o inferno continua cheio. E Brasília, quando atravessada por uma onda de euforia moralizante, parece ainda mais propensa a repetir seus erros mais bem-intencionados. É sob esse clima — de cruzada fiscal contra os super-ricos — que a militância petista tem tomado as iniciativas nas redes sociais como se estivéssemos às vésperas de uma revolução tributária. Não estamos.
O discurso de enfrentamento ao “andar de cima” — um olhar míope sobre o derrotado decreto sobre o IOF — tem sido vendido como antídoto para o sucateamento dos serviços públicos. Mas há uma verdade incômoda escondida sob o palanque da retórica progressista: a expansão da arrecadação não implicará necessariamente em mais recursos para saúde, educação, transporte ou infraestrutura social.
E não por má vontade do governo, mas por uma armadilha contábil que ele próprio aceitou: o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), aprovado em 2023, é um regime que limita, por lei, o crescimento dos gastos públicos — independentemente do desempenho da arrecadação.
Segundo as regras do NAF, as despesas só podem crescer entre 0,6% e 2,5% ao ano, com base no crescimento real das receitas. Ou seja, mesmo que a arrecadação cresça 10%, 15% ou 20% em um ano, o governo estará legalmente impedido de transformar essa folga fiscal em mais investimento social. O que é pior: os pisos da educação e saúde estão fora desta regra e, portanto, crescem acompanhando as receitas, atropelando os outros gastos sociais. A solução matemática possível é a quebra dos pisos da saúde e educação – amplamente aceito e divulgado pela equipe econômica do governo.
O que se criou, portanto, é um sistema em que o aumento de receita serve prioritariamente para a obtenção de superávit primário e para o pagamento de juros da dívida pública, não para expandir o SUS, a rede de creches ou os institutos federais.
Essa lógica inverte a promessa progressista: arrecadar mais não significa investir mais. Significa apenas cortar menos.
Não se trata de negar a importância de corrigir distorções do sistema tributário brasileiro que historicamente se apresenta profundamente regressivo. Tributar o patrimônio e a renda é uma medida elementar de justiça fiscal. Mas insistir na narrativa de que essa tributação, sozinha, vai financiar o Estado de bem-estar é, no mínimo, imprudente — quando não desonesto.
A questão é estrutural. O Brasil ainda carrega uma matriz tributária que penaliza os mais pobres. Apesar do discurso renovado, o lulismo nunca promoveu, em 15 anos de governo, uma reforma tributária estrutural que tocasse o núcleo da regressividade fiscal brasileira.
A atual campanha contra os muito ricos, amplificada em redes sociais e rodas de militantes, parece mais uma estratégia simbólica de mobilização eleitoral para 2026 do que um plano real de reconstrução do Estado. É o “nós contra eles” fiscal, útil para animar a base, mas vazio de potência transformadora quando confrontado com as amarras do arcabouço.
É preciso abandonar o conforto da simbologia e encarar os dados. O NAF é, na prática, um novo teto de gastos com linguagem mais suave. Sua essência é a mesma: garantir que o Estado não cresça, mesmo quando houver recursos. O objetivo implícito é conter o “custo social” do orçamento, para preservar a confiança do mercado que ganha duplamente: com juros da dívida e através das privatizações e concessões.
Se o governo e a militância petista ainda possuem uma molécula de desejo de reconstrução de um pacto social brasileiro, não basta tributar os ricos. É preciso romper com o NAF e repensar, com coragem, o papel do orçamento na garantia de direitos sociais.
Caso contrário, o que se vende como justiça fiscal poderá entrar para a história como mais um capítulo do autoengano progressista — e, eventualmente, como o prelúdio de um novo estelionato eleitoral.
Bruno Resck – Geógrafo – professor no IFMG campus avançado Ponte Nova
Fonte: GGN