Judicialização contra Planos de Saúde salta 50% em 3 anos; Entenda o problema
As reclamações contra os planos de saúde têm aumentado a cada ano. De acordo com dados do Procon-SP, ao longo de 2022, foram registradas 9.537 queixas de consumidores no órgão. No ano passado este número saltou para 13.230, alta de 38% no período. A insatisfação contra os serviços prestados pelas operadoras tem levado também ao aumento no número de processos judiciais.
De acordo com último levantamento do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), entre 2020 e 2023, a quantidade de novos processos de usuários contra os planos de saúde nos tribunais brasileiros saltou mais de 50%, saindo de 80,7 mil novas ações para atingir 122,2 mil casos novos. Para se ter uma ideia, só nos primeiros 4 meses deste ano, o CNJ já contabilizou 4 mil novas ações.
O advogado sanitarista e professor de direito médico da USP e da PUCPR, Silvio Guidi, considera que dois pontos são fundamentais para entender a alta judicialização da saúde suplementar no Brasil.
“O primeiro deles é o enorme hiato entre a expectativa do consumidor, quando contrata um plano de saúde, e aquilo que é efetivamente ofertado pela operadora. A principal razão que leva alguém a contratar um plano de saúde é o medo de depender exclusivamente do SUS [Sistema Único de Saúde]. A percepção da sociedade em relação ao SUS é de insegurança, com enorme receio de simplesmente não conseguir atendimento”, avalia.
Diante disso, quando há a contratação do plano de saúde, o consumidor passa a acreditar que todas as suas necessidades de saúde serão atendidas em toda e qualquer circunstância. “Mas um produto assim, com esse perfil universal e infinito, simplesmente não existe. Nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. As operadoras oferecem, sim, uma cobertura para todas as doenças e agravos de saúde”, comenta o professor ao destacar que a forma de assistência às necessidades segue uma lista predefinida de procedimentos e tecnologias (o famoso rol da ANS).
Resumindo: nem tudo que está disponível no mercado, tampouco o que ainda está no ambiente de experimentação, é coberto pelas operadoras.
“Mas o consumidor só vai se deparar com essa realidade quando a necessidade de saúde efetivamente chega. Dessa forma, em um momento bem sensível da vida, o consumidor terá uma expectativa frustrada. Essa enorme frustração é tradicionalmente direcionada ao Judiciário”, comenta.
O segundo ponto, diz ele, tem a ver com o aumento das discussões sobre o assunto na sociedade. “Isso faz chegar ao consumidor a informação de que essas negativas de cobertura são levadas ao Poder Judiciário, que, com enorme frequência, julga a causa em favor do consumidor”, diz.
Importante destacar que a discussão judicial entre operadoras e consumidores sempre foi conhecida, mas ganhou destaque em 2022. Naquele ano, houve a discussão no STJ sobre a extensão do rol de procedimentos da ANS.
Anatomia da Judicialização
Caio Henrique Fernandes, sócio do Vilhena Silva Advogados, especializado em direito à saúde, considera que alguns fatores contribuem para que o usuário de plano de saúde busque a Justiça.
“Um deles é a falta de regulamentação da ANS, principalmente nos planos coletivos, por adesão ou empresariais. Esses planos apresentam falhas de regulação, deixando na mão das operadoras alguns pontos cruciais para a relação de consumo”, diz Fernandes ao lembrar que dois exemplos comuns são a abusividade no reajuste dos contratos e o cancelamento unilateral do convênio médico. “Uma das formas encontradas para ter o direito à saúde garantido é buscar a Justiça”, considera o advogado.
Os motivos que mais levam os consumidores à Justiça são muitos, mas Fernandes destaca alguns:
- reajuste de mensalidade, sem que a operadora consiga comprovar a real necessidade de aplicação do índice elevado, muitas vezes acima do valor determinado pela ANS para planos individuais;
- cancelamentos de contratos;
- negativas de tratamento, pois as operadoras não acompanham a evolução da medicina, que se desenvolve de forma muito rápida para apresentar soluções mais eficazes às doenças.
“Os dados objetivos do CNJ apresentam-se estarrecedores por configurar um recorde na série histórica e só evidencia um nível de litigiosidade jamais visto em qualquer outro país do mundo no setor”, comenta Gabriel de Britto Silva, advogado especializado em direito do consumidor.
Ele destaca que tal volume faz com que as demandas judiciais se tornem excessivamente morosas, o que é péssimo para as causas de saúde urgentes, pois a demora pode ser o marco divisor entre a vida e a morte. “A permanência de um conflito de interesse não pacificado no seio social representa, não só um prejuízo à paz, mas também a toda economia das operadoras de saúde, considerando a provisão de capital que deve permanecer sendo destacada para determinado processo”, afirma.
Impacto ao setor
O advogado Henderson Fürst, sócio do escritório CGV Advogados, comenta que os números da judicialização da saúde (pública ou suplementar) no Brasil não possuem equivalência em outros sistemas de saúde no mundo.
“Dentro desses números, encontram-se tanto problemas relacionados a falhas do setor – algo que também ocorre em outros segmentos econômicos regulados – como também pedidos que fogem da lógica do sistema de saúde suplementar, e acabam desequilibrando o sistema e implicando em novas falhas e inflação do setor que o torna insustentável. É um ciclo vicioso que precisa de esforços coordenados para ser revertido”, avalia o advogado.
De acordo com levantamento da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), realizado com base nos dados da ANS, as despesas judicias das operadoras alcançaram R$ 5,5 bilhões em 2023, aumento de 37,6% em comparação ao ano anterior. Nos últimos 5 anos, o custo com a judicialização foi de R$ 17 bilhões.
Para o advogado Bruno Boris, sócio e fundador do escritório Bruno Boris Advogados, a responsabilidade da judicialização não é apenas das operadoras de plano de saúde. “Algumas, de fato, descumprem leis e normas regulamentadoras da ANS, mas muitas, inclusive as que cumprem seus contratos são surpreendidas por decisões judiciais que acabam, muitas vezes, subvertendo a lógica do contrato de seguro-saúde, como se houvesse uma cláusula aberta no contrato para obrigar a operadora a custear todo e qualquer procedimento”, avalia Boris. “Existem exclusões no contrato que, sendo legais, devem ser cumpridas”, complementa.
Leo Rosenbaum, sócio do Rosenbaum Advogados, considera que a crescente judicialização dos planos de saúde é uma tendência preocupante que tem se intensificado nos últimos anos. Para ele, o aumento no número de processos judiciais envolvendo planos de saúde pode ser atribuído, em grande parte, à necessidade de cobertura de tratamentos e medicamentos cada vez mais caros, os quais os planos de saúde muitas vezes relutam em autorizar, mesmo quando os usuários têm direito à cobertura.
“A questão das margens de lucro das operadoras de planos de saúde é um fator crítico a ser considerado. Com o aumento dos custos dos serviços médicos, as operadoras enfrentam desafios significativos para manter suas margens de lucro. Isso resulta na criação de obstáculos para a autorização de tratamentos e procedimentos necessários, forçando os pacientes a recorrerem ao Judiciário para garantir o acesso aos cuidados de saúde”, afirma Rosenbaum.
O que diz o setor?
A FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar) ressalta, por meio de nota oficial, que o crescimento das demandas judiciais é uma preocupação tanto no setor público quanto na saúde suplementar. “No caso dos planos de saúde, uma das razões é a instabilidade das regras. Em 2022, houve mudanças radicais e inesperadas nas leis do setor, contribuindo para a alta da judicialização”, diz a entidade.
Nesse contexto, continua a nota oficial, vale ressaltar os resultados do recente estudo sobre a Judicialização da Saúde Suplementar, coordenado pelo professor Daniel Wang (FGV/SP), com recorte no Estado de São Paulo, que analisou todas as decisões de 1ª e 2ª instância do TJSP relativas a planos de saúde proferidas entre 2018 e 2021.
“Nesse período, o TJSP proferiu 205 mil decisões relativas a planos de saúde na 1ª e 2ª instâncias [média de 50 mil decisões por ano], versando a maioria sobre cobertura assistencial. Em 80% das demandas judiciais de primeira instância, relativas à cobertura assistencial, os pedidos são deferidos, enquanto nas ações envolvendo questões contratuais esse índice cai para 60%, e fica em 41% nos casos sobre reajuste.”
Ainda segundo a entidade, na segunda instância, em apenas 3 de 599 casos há informação de que foi realizada perícia judicial; em 9, o Tribunal informa que a perícia deveria ocorrer; e em nenhum há menção a parecer de Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), que é a principal fonte de informações técnicas disponível aos julgadores e independente das partes. Em decisões de segunda instância relacionadas à negativa de cobertura e reajuste o TJSP fundamenta suas decisões, sobretudo, na sua própria jurisprudência (56%) e no Código do Consumidor (CDC) (42%), mais do que na Lei nº 9.656/1998 (23%).
”A judicialização é a forma mais injusta de acesso à saúde, pois beneficia apenas aqueles que têm informação e recursos financeiros para recorrer aos tribunais, deixando desassistida a grande maioria dos beneficiários dos planos de saúde”, afirma a diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente.
Por fim, a federação enfatiza que medidas que visam reduzir a judicialização na saúde, como estratégias de mediação, conciliação e canais de ouvidoria, são fundamentais para garantir a manutenção da sustentabilidade do sistema.
Fonte: InfoMoney