Futebol, política e ódio num país dividido
"Será que a nossa seleção vai deixar o Catar sem deixar uma marca, como fizeram outras seleções, como a da Inglaterra e da Alemanha, em defesa da democracia, direitos humanos e redução das desigualdades sociais no mundo?", questiona Jose Rodrigues Filho, professor da Universidade Federal da Paraíba, pesquisador nas universidades de Johns Hopkins e Harvard e ex-professor visitante na Universidade McMaster, Canadá, em artigo publicado em seu blog, dezembro-2022.
Eis o artigo.
Nunca na história das Copas do Mundo a política esteve tão presente como na deste ano, trazendo as fraturas expostas, não dos jogadores, mas de muitas mazelas que assolam as sociedades dos países participantes, principalmente dos mais autoritários, a começar pelo Catar, anfitrião do campeonato, que começa a receber a atenção do mundo por conta das violações de direitos humanos, especialmente das mulheres, vistas como seres humanos de segunda categoria, submetidas a uma submissão perversa. Isto sem falar nas denúncias de corrupção e práticas de trabalho escravo.
Como já foi dito, não dá para se ver a Copa do Mundo apenas como um entretenimento. Não dá para separá-la da política. No caso do Brasil, sempre tivemos as copas inseridas na política. Em 1970, quando Pelé levou o Brasil à vitória, as elites e a imprensa burguesa, aliadas ao regime militar, fizeram a grande comemoração, enquanto muitos temiam pelo fortalecimento de uma ditadura militar brutal. Por outro lado, em 1982, Sócrates, o famoso meio de campo, tornou-se um fervoroso oponente à ditadura.
Desde que Neymar, enquanto estrela da Seleção Brasileira, prometeu dedicar seu primeiro gol da Copa do Mundo ao presidente Jair Bolsonaro, a disputa política tornou-se mais acirrada, indo além da disputa por símbolos nacionais, como as cores de nossa bandeira e o confronto entre Neymar e Richarlison, como porta-vozes legítimos para atenuar a violência e o ódio dominantes num país tão carente de uma pacificação. No caso de Neymar, muito precisa ser ainda esclarecido, quando se comenta que este apoio ao presidente Bolsonaro é em troca do não pagamento de imposto de renda.
Vale lembrar que Richarlison fez o gol mais bonito da primeira rodada da Copa, lançando-se em uma bicicleta elétrica, deixando o goleiro sem defesa e, como foi dito, sem pai e sem mãe. Este gol está sendo comparado a expressão matemática – a sequência de Fibonacci e virou destaque nas redes sociais. Além disto, Richarlison tem focado em políticas esquerdistas, como um defensor das vacinas para a Covid-19, ao contrário de Bolsonaro que, além de criticar as vacinas, nunca disse se as tomou.
Depois de mais de um mês da eleição, Bolsonaro ainda não aceitou o resultado das urnas, mantendo-se em silêncio, permitindo a desordem por parte de militares com salários polpudos, tentando desestabilizar a República. “A nostalgia de grupos fascistas pelos tempos da ditadura militar não é motivo bastante para que a democracia brasileira mude seu funcionamento. É motivo, sim, para que respondam na Justiça por golpismo, sejam eles civis ou oriundos da caserna.”
“Esses são apenas alguns exemplos recentes da bagunça que se instaurou nas Forças Armadas brasileiras. Disciplina e hierarquia se tornaram uma lenda na instituição, que não pune — ou ao menos não divulga exemplarmente a punição, como deveria fazer — os fardados que se posicionam politicamente e insuflam motim na caserna e fora dela.”
Será que Neymar e outros bolsominions da Seleção são favoráveis a esta violência e caos? Ideias de esquerda ou direita da nossa seleção são aceitáveis, mas ideias golpistas antidemocráticas devem ser repudiadas e condenadas, da mesma forma que se deve condenar aqueles que não têm sentimentos pela dor, ferimentos ou fraturas dos jogadores, como aconteceu com o próprio Neymar, mesmo diante de ações odientas.
Depois de tanto sofrimento da sociedade brasileira, com a perda de quase 700 mil compatriotas durante a pandemia, disseminação intensa do ódio nos últimos quatro anos, massacre de índios, destruição da floresta Amazônica, orçamento secreto e desrespeito às nossas instituições, será que nossa Seleção vai deixar o Catar sem deixar uma marca, como fizeram outras seleções, como a da Inglaterra e da Alemanha, em defesa da democracia, direitos humanos e redução das desigualdades sociais no mundo?
Não vamos desperdiçar nossa inteligência mantendo a ignorância de assistir aos jogos da Copa de forma passiva, sem observar as mazelas e hipocrisias do que acontece no mundo e entre nós. Vamos continuar sendo torcedores, mas nosso olhar crítico tem que se voltar sobre o que acontece no Catar e no Brasil nos dias de hoje. Infelizmente, os brasileiros sempre viram o futebol apenas como um entretenimento, sem olhar o lixo debaixo do tapete.
Fonte: Revista IHU