Derrotar os ricos

Depois que saiu do Banco Central, Roberto Campos Neto cumpriu a quarentena fajuta imposta pela legislação e virou executivo do Nubank, fintech cujos interesses sempre defendeu tão bem. De quebra, arranjou uma posição de colunista da Folha. Como todo mundo sabe, os jornalões fazem questão de preencher as páginas do seu noticiário econômico com propagandistas do credo ultraliberal, que assim aparece diante de seus leitores como uma verdade absoluta, uma visão técnica e objetiva – e não o que de fato é, uma perspectiva ideológica, profundamente enviesada, já testada e reprovada na prática.
Na sua quarta coluna, o prócer bolsonarista manifestou-se contra a tributação dos ricos. Como argumento, desfiou a mesma ladainha de sempre. O ponto principal está resumido em uma frase curta: “Taxar riqueza é punir o sucesso”.
A naturalidade com que este argumento é esgrimido por liberalóides de todos os naipes, aparecendo os olhos daqueles de menos luzes, como Campos Neto, como se fosse irrefutável, merece reflexão.
Por que aceitamos, tão automaticamente, esta equivalência entre sucesso e dinheiro? Maria, que é professora e consegue alfabetizar com competência as crianças na escola, tem sucesso – nem por isso faz muito dinheiro, muito menos deixa de pagar imposto. Ou Ana, que é cozinheira e prepara refeições nutritivas e saborosas. Ou Francisca, que é médica na emergência de um hospital público e salva muitas vidas com seu trabalho. Ou Júlia, cabeleireira, que deixe as clientes satisfeitas ao cuidar de suas melenas. Não preciso continuar: vocês me entenderam.
Parece que todo o sucesso que se possa imaginar precisa ser traduzido em dinheiro. Estão aí as redes sociais, cheias de influenciadores que ganham dinheiro mostrando ou, muitas vezes, apenas fingindo que são ricos: estão expondo ao mundo o seu “sucesso”. Mesmo profissionais como advogados ou médicos fazem propaganda exibindo roupas de grife, automóveis de luxo, se possível iates e jatinhos. A ostentação de riqueza seria uma forma de provar para o público que são profissionais competentes e exitosos.
Não sei se posso me considerar um profissional de sucesso; cada vez mais, acho que não. Mas não é por não ter ficado rico. Sempre conto a história de quando, logo antes de me tornar professor, recebi o convite para trabalhar em um escritório de lobby, com a promessa de ganhar “uma vida bem mais confortável”. Recusei. Não sou asceta e bem gostaria de poder consumir uns vinhos caros, mas ter independência para fazer o que acho importante e ter orgulho do meu trabalho também pesam nessa conta.
Essa história vem de longe e, claro, tem a ver com o etos do capitalismo. Seu motor é a busca da acumulação de riquezas. Jeremy Bentham, o grande autor da filosofia utilitarista que ainda é a base de todo o liberalismo vulgar, dizia que o objetivo natural e autoevidente de qualquer ser humano era ampliar a própria “utilidade”. O termo, segundo ele, designaria “aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que novamente equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade”. Mas, embora arrolasse diferentes tipos de utilidade, muitos deles não materiais, e vários tipos de prazer, também incluindo os não-materiais, acaba encontrando um atalho que permitia unificar e quantificar tudo: “A cada porção de riqueza corresponde uma porção de felicidade”.
Outro nome central da filosofia do capitalismo, uma geração anterior a Bentham, Adam Smith dizia que a disposição de admirar os ricos e poderosos e desprezar os pobres era “necessária tanto para estabelecer quanto para manter a distinção de hierarquias e a ordem na sociedade” – embora reconhecesse que também era uma grande causa da corrupção dos sentimentos morais.
Assim, o neto de Bob Fields pode dizer, como se estivesse anunciando uma obviedade, que taxar os ricos, “punir o sucesso”, é prejudicar a inovação e diminuir o bem-estar geral. São eles, os capitalistas, que promovem este bem-estar? E a “inovação”, que tantas vezes tem como resultado nos escravizar, nos controlar, nos privar de autonomia, ela deve sempre ser louvada – pois, afinal, produz lucro?

Campos com o ditador e o neto com o presidiário.
Ou seria o caso de refletir que aumentar o PIB e aumentar o bem-estar não são necessariamente a mesma coisa? Que, provavelmente, a médica, a cozinheira, a professora e a cabeleireira contribuem mais para o bem-estar geral do que os especuladores financeiros que Campos Neto quer proteger?
O sucesso de que ele fala muitas vezes começou nas costas dos escravos vindos da África – e continua com a exploração impiedosa da força de trabalho, que é quem de fato produz a riqueza. Outro dia, houve um pequeno burburinho quando a dona de uma confeitaria paulistana, conhecida por exibir nas plataformas suas bolsas de R$ 100 mil, anunciou que estava contratando um auxiliar de cozinha por R$ 1.800 mensais. A família Safra tem uma fortuna de bem mais de R$ 100 bilhões, mas o porteiro de um banco em São Paulo ganha R$ 2.500 por mês.
Cobrar imposto dos ricos é uma medida óbvia de justiça social. Não existe “mérito” que justifique tamanha disparidade de riqueza. É moralmente inaceitável que alguns possam viver na ostentação e no desperdício, enquanto outros não conseguem suprir suas necessidades mais básicas.
A tributação da riqueza amplia a prosperidade geral, por meio de serviços públicos e de investimento em infraestrutura. Movimento a economia gerando empregos e também ampliando a capacidade de consumo dos mais pobres.
O colunista da Folha faz as ameaças de sempre: o imposto vai reduzir os investimentos, vai afugentar os ricos, vai levar à evasão fiscal. Mas é pouco provável que as empresas estejam dispostas a abandonar um mercado de mais de 200 milhões de consumidores ou um território produtor de tantas matérias-primas. É possível coibir as mudanças de domicílio fiscal, com regras como aquela que a França está reinstituindo agora. Enfim, a ameaça de caos econômico tem nome: chantagem.
A luta contra a tributação progressiva é uma prioridade dos proprietários. Afinal, imposto é luta de classes. É importante vencer esta luta. Mas, de maneira mais geral, é fundamental derrotar os ricos. Sem isso, qualquer democracia é impossível.
A desigualdade econômica transborda para política de múltiplas maneiras: controle dos meios de comunicação, financiamento de campanhas, lobby, corrupção, chantagem, o efeito automático que o monopólio das decisões de investimento tem sobre os governantes. É impossível entender a radicalização da direita, hoje, sem incluir na narrativa a pressão de bilionários ideologicamente motivados, que colocaram seus dólares (ou euros, já que o fenômeno é documentado também na Europa) a serviço de ideologias extremistas que outra maneira dificilmente prosperariam.
Aliás, no Brasil, é notório o apoio que o Nubank – o empregador de Campos Neto – deu e dá à Brasil Paralelo, hoje talvez a maior disseminadora de desinformação e discurso de ódio do país.
Como não me canso de dizer, a democracia não é um conjunto etéreo de “regras do jogo”. Ela está ancorada na correlação de forças na sociedade: seu espaço é exatamente igual àquele que dominados conseguem extrair na luta contra a classe dominante.
Sob este ponto de vista, é alvissareiro que Roberto Campos Neto tenha que se dar ao trabalho de vociferar contra a taxação das fortunas. Mostra que, apesar dos pesares, estamos conseguindo avançar em algumas pautas.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).
Fonte: Jornal GGN





