Caixa cedeu 99% dos empréstimos do Auxílio Brasil no período eleitoral

Caixa cedeu 99% dos empréstimos do Auxílio Brasil no período eleitoral

No período eleitoral, a Caixa Econômica Federal disponibilizou 99% de toda sua carteira de crédito consignado do Auxílio Brasil de 2022, revelam dados exclusivos obtidos pelo UOL.

Os números reforçam suspeitas sobre o uso do banco estatal para beneficiar o então presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) na reta final da disputa com Lula (PT).

Relacionadas

O crédito foi iniciado após o primeiro turno. Até o segundo turno, a Caixa concedeu R$ 7,595 bilhões para 2,9 milhões de beneficiários do programa de transferência de renda — o que equivale a 99% do total de 2022.

Já após as eleições, até o final do ano, foram liberados R$ 67 milhões, para 53 mil pessoas — 1%.

É a primeira vez que os dados são tornados públicos. Desde outubro, o UOL requer as informações para a Caixa, que sempre se negou a fornecê-las — mesmo após pedido via Lei de Acesso à Informação. Os dados só foram disponibilizados depois de questionamento da Controladoria-Geral da União (CGU), que foi acionada pela reportagem.

Os dados evidenciam o uso da máquina pública para uma finalidade claramente eleitoral. Não faz nenhum sentido uma política de crédito cuja concessão se dá durante o período das eleições e depois para. É algo circunstancial, que mostra uma tentativa de fazer de tudo para conseguir a reeleição de Bolsonaro. A penalidade mais provável é que o ex-presidente seja condenado na Justiça Eleitoral à inelegibilidade por oito anos."
Renato Ribeiro de Almeida, advogado especialista em direito eleitoral, coordenador acadêmico da Academia Brasileira Eleitoral

Após a derrota de Bolsonaro no segundo turno, a Caixa insistiu publicamente que o consignado seguia ativo, fazendo com que milhares de pessoas continuassem nas filas de agências e lotéricas para solicitar o dinheiro.

Em novembro, no entanto, o UOL revelou documentos internos do banco que mostravam o corte do empréstimo após as eleições. Mas, até agora, não se sabia o tamanho da concentração dos créditos da Caixa entre o primeiro e o segundo turno.

Outro lado

Procurada, a Caixa disse que "atuou conforme autorizações legais emitidas pelo então Ministério da Cidadania. Nesse sentido, o banco, assim como as demais instituições habilitadas para ofertar o produto no mercado, atuou para disponibilizar o Consignado Auxílio aos seus clientes".

O UOL também procurou a defesa de Bolsonaro no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), representada pelo advogado Tarcisio Vieira de Carvalho, para comentar o caso, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

Bolsonaro promoveu consignado em canal de campanha

Segundo especialistas consultados pela reportagem, a concentração do consignado antes da votação pode ter consequências para Bolsonaro na Justiça Eleitoral.

Em caso de condenação, as penalidades previstas vão desde multa até a inelegibilidade — ou seja, Bolsonaro não poderia disputar novas eleições.

O TSE já está analisando o assunto. Em dezembro de 2022, o PT pediu ao tribunal a abertura de uma investigação cujo objeto é saber se Bolsonaro usou ou não a máquina do governo para se beneficiar na eleição.

Segundo o PT, o adversário usou programas sociais "com o claro intuito de angariar votos e, portanto, influenciar na escolha dos eleitores brasileiros, de modo a ferir a lisura do pleito". Uma das políticas citadas pelo partido é justamente o consignado do Auxílio Brasil.

A ação foi aceita pela corte. A defesa do ex-presidente ainda não se manifestou nos autos.

No período eleitoral, Jair Bolsonaro chegou a fazer propaganda do consignado usando canais oficiais da campanha, o que pode configurar uso do programa de crédito para promoção da candidatura.

A página do então presidente no Telegram, que estava cadastrada na Justiça Eleitoral e contava com cerca de 3 milhões de seguidores, fez três posts promovendo o consignado durante a campanha. O primeiro, a três dias do primeiro turno. Os demais, antes do segundo turno.

"Consignado Auxílio Brasil a juros baixos para os mais necessitados: entidades financeiras concluíram o processo de habilitação e estão autorizadas a realizarem empréstimo consignado a partir da próxima segunda-feira (10/10)", diz post de 9 de outubro.

As famílias do Auxílio Brasil, hoje sem acesso a crédito -- muitas delas endividadas e pagando juros altos --, passam a ter acesso ao Crédito Consignado, para que possam reorganizar-se financeiramente, empreender e buscar autonomia"
Post no Telegram de Bolsonaro, cadastrado no TSE entre os sites da campanha, em 4 de outubro

O que mostram os números

O consignado foi criado por medida provisória de Bolsonaro, aprovada no Congresso em julho. Mas os créditos só começaram em 10 de outubro, após o primeiro turno, quando o candidato à reeleição obteve seis milhões de votos a menos que Lula.

De lá até o segundo turno, em 30 de outubro, a Caixa depositou R$ 6,851 bilhões em créditos para beneficiários do Auxílio Brasil.

Mais R$ 744 milhões foram depositados entre 31 de outubro e 1º de novembro. Segundo a própria Caixa, tratam-se de empréstimos concedidos antes das eleições, pagos nos primeiros dias úteis da semana seguinte devido aos prazos de processamento dos pedidos.

Isso dá, em média, R$ 447 milhões por dia útil. O pico foi em 20 de outubro: R$ 731 milhões.

Já de 2 a 13 de novembro, com o fim do período eleitoral, o consignado foi interrompido pela Caixa completamente. Em 14 de novembro, foi retomado, mas com volume muito abaixo do fornecido no período eleitoral.

Na média do período pós-eleições, a Caixa liberou R$ 1,7 milhão por dia útil.

A concentração dos créditos no período eleitoral, somada à negativa da Caixa em fornecer essas informações que são públicas, indicam que pode ter havido um uso político do consignado do Auxílio Brasil. Mas, devido a mudanças na lei em 2021, ficou muito difícil configurar um ato de improbidade administrativa no Brasil, o que gera uma crise de confiança na sociedade."
Laura Amando de Barros, especialista em direito do Estado e professora do Insper

Consignado foi contestado durante eleições

O consignado permite o desconto automático de até 40% do valor do Auxílio Brasil, na fonte, para pagar o crédito. Os juros chegam a 50% ao ano.

A Caixa foi o único banco de grande porte — e também o único estatal — que decidiu operar o empréstimo. Outras instituições financeiras menores também participaram. Mas dados obtidos pelo UOL em dezembro mostram a centralidade da Caixa na política: cerca de 80% do consignado do Auxílio Brasil foi concedido pelo banco estatal.

No período eleitoral, poucos pedidos do consignado eram negados pela Caixa, segundo fontes do banco ouvidas pela reportagem.

Ainda antes do segundo turno, o Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) solicitou a suspensão do consignado. "Não seria desarrazoado supor que o verdadeiro propósito dessas ações seja o de beneficiar eleitoralmente o atual presidente da República e candidato à reeleição", escreveu a Procuradoria em 18 de outubro.

O TCU, porém, deu aval para a continuidade do consignado durante a campanha eleitoral.

Em dezembro, a partir da reportagem do UOL que revelou o corte no consignado depois da derrota de Bolsonaro, a Procuradoria ingressou com uma nova representação. O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado pediu investigação de uso eleitoral e até apuração de responsabilidade da presidente da Caixa, Daniella Marques, e do próprio presidente Bolsonaro.

Por que uma mudança tão brusca após a derrota do candidato Jair Bolsonaro às eleições? O que mudou no período das eleições e o período em que saiu derrotado? Os fatos falam por si. Mais uma vez: se antes eram autorizados inúmeros consignados e com extrema agilidade, por que mudou após as eleições?"
Subprocurador-geral do MPTCU Lucas Rocha Furtado, em 18 de outubro

Documento interno da Caixa informa mudanças no consignado do Auxílio Brasil a partir de 14/11/2022

Imagem: Reprodução

Ação de inconstitucionalidade no STF

O consignado do Auxílio Brasil também foi questionado por uma ação direta de inconstitucionalidade proposta ao STF (Supremo Tribunal Federal) pelo PDT. Para o partido, o empréstimo é um "cavalo de Troia", pois ajuda o beneficiário no curto prazo, mas "agrava a fragilidade econômica" no longo prazo.

No âmbito da ação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou que o consignado é inconstitucional. A posição gerou surpresa, já que Aras se mostrou alinhado a Bolsonaro em outras ocasiões.

Os tomadores de empréstimos consignados estarão no caminho do superendividamento. Tratando-se dos beneficiários dos programas de transferência de renda, esse cenário mostra-se ainda mais preocupante, pois potencialmente comprometedor da dignidade humana."
Augusto Aras, procurador-geral da República, em parecer de 14 de novembro

Já sob o novo governo, houve uma mudança nas regras do consignado: na semana passada, o Ministério da Cidadania reduziu de 40% para 5% o teto para comprometimento com pagamento de prestações do empréstimo consignado. A Caixa, porém, anunciou a suspensão da modalidade este ano, por tempo indeterminado.

Fonte: UOL

Compartilhe: