Articulação entre Zema e o Judiciário rifa direitos, afirmam especialistas
“A incidência do governo estadual no Judiciário, para promover a negação de direitos básicos do funcionalismo público e o favorecimento explícito das mineradoras"
A relação entre Romeu Zema (Novo) e o Judiciário tem chamado a atenção de especialistas. Só no ano passado, além da prática contínua de construir arranjos para facilitar a atuação de mineradoras no estado, o governador de Minas Gerais recorreu à Justiça para buscar autorização para aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e para inviabilizar o reajuste salarial do funcionalismo público.
As duas matérias já haviam sido apreciadas pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Porém, o parlamento mineiro não deu aval aos projetos de Zema. Contrariado, o governador foi em busca do Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar impor seus interesses ao estado.
Para Fernanda Lage, presidenta da Comissão de Apoio à Advocacia Popular da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Minas Gerais, a articulação entre os dois poderes, durante a gestão do Partido Novo, tem servido para rifar direitos.
“A incidência do governo estadual no Judiciário, para promover a negação de direitos básicos do funcionalismo público e o favorecimento explícito das mineradoras, em detrimento dos nossos territórios, serras e águas, demonstram que essa gestão não poupa esforços para impor a carestia e a miséria ao povo mineiro”, afirma Fernanda, que também é uma das coordenadoras da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Judicialização de greve e multa milionária
No início deste mês, uma das maiores entidades sindicais da América Latina, o Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE/MG), lançou uma campanha de arrecadação financeira para conseguir manter suas atividades.
O cenário é consequência de uma ação, movida por Zema e acolhida pela Justiça, no ano passado, que acarretou em uma multa de mais de R$ 3 milhões e no bloqueio das contas do sindicato. A justificativa foi uma greve realizada pela categoria pelo direito de receber o piso salarial nacional, que não é cumprido pelo governo de Minas.
Desde que Romeu Zema chegou ao poder, em 2019, todas as paralisações dos profissionais da educação foram judicializadas.
“Quando existem conflitos e reivindicações que o governo não quer atender, ele recorre ao Poder Judiciário. É lamentável a falta de habilidade política e de disposição para atender as pautas da educação. Minas Gerais não paga o piso e nem atende as demandas da categoria. É isso o que temos enfrentado”, comenta a coordenadora-geral do Sind-UTE Denise Romano.
Sem reajuste para os servidores
No último ano, o pagamento do piso da educação e o reajuste salarial de 14% para profissionais da saúde e da segurança pública foram aprovados pela ALMG.
Porém, com a justificativa de que o Estado não possui “pote de ouro”, o governador de Minas buscou o STF, alegando inconstitucionalidade da medida. Com o aval do Judiciário, Zema anunciou um aumento de apenas 10% para as três categorias.
RRF goela abaixo
Outro episódio envolvendo o STF foi o do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Após duas negativas do parlamento mineiro em aprovar a adesão do estado à medida, que é uma das prioridades de Zema, o governador buscou o órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro para alcançar seus objetivos.
Com o aval do governo de Jair Bolsonaro e da Justiça, o governo de Minas busca garantir a implementação do regime no estado. Porém, com a eleição de Lula (PT), o governo federal já deu sinalizações de que não é favorável à medida.
O RRF é amplamente criticado por economistas, políticos, servidores públicos, organizações populares e cientistas políticos, por se tratar de um plano que exige a suspensão de concursos públicos, proibição de reajustes salariais aos servidores e privatização de empresas estatais.
Facilidades para mineradoras
Quando o assunto é mineração, a relação entre o governador de Minas e o Judiciário se aprofunda ainda mais. Um dos marcos da boa convivência foi a construção, sem participação popular, do acordo bilionário para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, assinado em 2021.
“Houve um alinhamento muito grande entre o presidente do Tribunal de Justiça, o governo Zema e o Procurador-Geral de Justiça. O acordo foi feito a portas fechadas e não sabemos quais negociações foram feitas. Essa foi a primeira evidência da lógica de resolver conflitos envolvendo a mineração no estado junto ao Judiciário, muitas vezes facilitando a vida das mineradoras”, afirma Pedro Andrade, advogado especializado em direito ambiental.
De lá para cá, foram inúmeros os casos mediados pela Justiça. Entre eles, destaca-se a questão da Serra do Curral, conhecida como cartão-postal da capital mineira, e que está ameaçada por projetos minerários.
Pedro resgata que, assim que saiu o laudo de tombamento da serra feito pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), a presidenta do órgão foi exonerada pelo governo.
Com a proximidade das eleições, Zema voltou atrás e soltou uma portaria do Iepha dizendo do tombamento da serra. Alguns dias depois, a mineradora Tamisa entrou com mandado de segurança na Justiça e conseguiu uma liminar derrubando a portaria.
Para Pedro, na realidade, a situação é mais um exemplo da relação entre o governador, as mineradoras e o judiciário.
“Ele [Zema] passa a assumir o discurso que tentou proteger a Serra do Curral e o Judiciário que passou por cima. Mas, é mentira. Quem ele [Zema] nomeou para assumir o cargo de presidente do Iepha, por exemplo, é parente de um dos diretores da mesma mineradora. Todas as manobras foram para impedir o tombamento”, avalia o advogado.
Rodoanel Metropolitano
Fernanda Lage relembra que outra “vitória amarga que Zema conseguiu com o aval do Judiciário” foi a não suspensão do processo de concessão do Rodoanel Metropolitano da capital mineira. Uma das prioridades de Zema, a construção da mega-estrutura é questionada pelas prefeituras de municípios da região.
O traçado proposto pelo governo coloca em risco áreas ambientais, comunidades quilombolas e até mesmo o abastecimento de água da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Mesmo com contestações jurídicas, o governador conseguiu homologar a concessão da obra em dezembro do ano passado.
“O sistema de Justiça acaba muitas vezes atuando como um fiador da política do governo Zema. Por exemplo, quando é questionado juridicamente, é comum a Justiça construir pareceres ou Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) para o governo, uma forma lateral de negar vigência à lei, atuando como poder moderador”, comenta o advogado Rawy Sena.
Fonte: Brasil de Fato