A proletarização do advogado no Brasil
Indústria da advocacia deveria admitir sua condição de classe patronal.
Quem circula pelos fóruns do Rio de Janeiro já deve ter percebido a nova estratificação social da classe dos advogados. Além dos tradicionais “profissionais liberais”, donos ou sócios de seus escritórios, os corredores da Justiça estão apinhados de “advogados cotinhas”, “advogados audiencistas” e “advogados prêt-a-porter“.
Os advogados-cotinha são aqueles contratados por grandes escritórios como “advogados associados”, cuja participação no capital da sociedade em geral se dá em cotas ínfimas – frequentemente inferiores a meio por cento (daí o “cotinha”).
Estes advogados, em geral, trabalham em longas jornadas de dez horas, sob controle direto; seu trabalho muitas vezes é repetitivo, quase mecânico (como se sabe, algumas das petições já são feitas por robôs, isto é, programas de computador aptos a produzir petições padronizadas).
Ao final do mês, recebem um valor fixo pelo trabalho despendido, sem qualquer acesso à contabilidade da sociedade e nenhuma participação efetiva nos seus resultados. Para esses profissionais, raramente há benefícios sociais como auxílio alimentação ou vale-transporte. Não há proteção contra doenças ou acidentes. As advogadas “associadas” que engravidam não têm qualquer garantia e muitas são despedidas em razão desta condição ou voltam a trabalhar poucos dias após o parto.
Esta figura jurídica (“advogado associado”) não consta da Lei 8906/94, tendo sido criada por autorização desta (art. 54, inc. V) no Regulamento Geral da OAB que, em seu art. 39, estabeleceu a possibilidade de associação para participação em resultados, “sem vínculo de emprego”.
Obviamente que este dispositivo não tem eficácia para afastar, por si só, a possibilidade de reconhecimento de existência de trabalho subordinado, até porque não pode um “regulamento” de uma entidade paraestatal legislar sobre Direito do Trabalho, sob pena de usurpar a competência do poder legislativo federal na matéria.
Observe-se que, nitidamente, o propósito do Regulamento da OAB foi permitir que advogados se unam para atender determinado cliente ou atuar conjuntamente em certas causas, preservando, para cada qual, o caráter liberal do exercício da profissão. Porém, o que se vê na prática é que grandes escritórios usam este dispositivo para mascarar uma evidente relação de emprego. Em uma palavra bastante simples: fraude.
Os “advogados audiencistas” sequer têm qualquer previsão normativa. Em geral, são contratados para audiências nos Juizados Especiais e na Justiça do Trabalho, sem qualquer formalização, recebendo “por produção”. Muitas vezes trabalham diariamente para os mesmos escritórios, cumprindo expediente nos corredores da justiça.
Os “advogados prêt-a-porter“, a última novidade na advocacia “just in time” são “fornecidos” por empresas “especializadas” em serviços de advocacia; eles integram um cadastro e são convocados pela empresa prestadora de serviços para atender os clientes em audiências. Isto é, embora sejam fornecidos por uma mesma empresa, trabalham para vários escritórios ao mesmo tempo.
As causas da proletarização do advogado (fenômeno antevisto por Marx e Engels no Manifesto Comunista) no Brasil são conhecidas: excesso de litigância de massa; mão-de-obra barata decorrente da superoferta de advogados no mercado de trabalho; dificuldade de fiscalização nos escritórios e transformação das grandes firmas de advocacia em organizações empresariais, porém com aparência legal e respectivos privilégios e isenções de “profissionais liberais”.
Se esses problemas sociais serão resolvidos algum dia não sabemos; eles estão por certo além da capacidade dos atores sociais no momento. O que cabe aos operadores do Direito que ainda guardam um razoável senso de justiça é reprimir os seus nefastos efeitos e vícios.
O Ministério Público do Trabalho, provocado por dezenas de denúncias, tem atuado de forma sistemática para coibir estas fraudes, que não só violam os direitos sociais dos advogados empregados, como acarretam grave sonegação fiscal e previdenciária.
A OAB deveria também zelar pelo inquestionável aviltamento e rebaixamento da profissão, atuando firmemente para evitar as fraudes escancaradas e o “comércio” de advogados. Porém, parece que esta não é uma das suas prioridades.
É desanimador perceber que uma entidade como a OAB, que frequentemente se arvora em defensora dos direitos humanos e da democracia, tenha decidido claramente o seu lado: atuar como uma guilda patronal na defesa dos grandes escritórios que, inegavelmente, se transformaram em poderosas organizações empresariais (a “indústria da advocacia”, como diriam os americanos).
Exemplo disto foi a impetração de mandados de segurança na Justiça Federal pela seção fluminense da OAB contra investigações da Procuradoria Regional da Primeira Região sobre a condição de empregados de advogados em alguns conceituados escritórios.
Não é possível que a OAB compactue com o argumento do patronato da advocacia, que frequentemente alega que estes advogados “conhecem perfeitamente a lei” e por isso “não desejam trabalhar como empregados”.
Bem, vamos lembrar que a “lei” (art. 39 do RGOAB) foi feita pela própria OAB, cuja cúpula é sempre dominada pelos proprietários de grandes escritórios, os quais, também por serem advogados, deveriam interpretá-la corretamente e de acordo com a legislação trabalhista (isto não requer nem especialização em Direito do Trabalho: quem cumpre horário, obedece ordens e recebe salário fixo é empregado; CLT, art. 3º).
Além disto, o “conhecimento profundo da lei” não é escusa para afastar contratos ilegais que ferem normas de ordem pública, como a legislação trabalhista. Se assim fosse, um advogado jamais poderia processar uma empresa fornecedora de produto defeituoso, se no respectivo contrato estivesse escrito que a empresa se isenta de qualquer responsabilidade; ora, bastaria a ela alegar que o advogado, pela sua perícia, não poderia se confundir quanto a cláusula de isenção constante do contrato…
O argumento de que os advogados proletarizados “não querem” ser protegidos pela lei trabalhista beira o absurdo e lembra o célebre e bizarro diálogo que Alexis de Tocqueville travou quando visitou os Estados Unidos em 1831, sobre por que os negros não votavam nas eleições, mesmo quando alforriados:
“Disse eu a um habitante da Pensilvânia ‘Explique-me por favor como, num Estado fundado por quacres e conhecido por sua tolerância, os negros alforriados não são admitidos a exercer os direitos de cidadão?’ ‘Não nos faça essa injúria – respondeu-me ele – de acreditar que os nossos legisladores tenham cometido um tão grosseiro ato de injustiça e de intolerância!’ ‘Então, em seu estado, os negros têm direito de votar?’ ‘Sem a menor dúvida’. ‘Então, como se explica que, no colégio eleitoral, esta manhã, não percebi sequer um na assembleia?’ ‘Isto não é culpa da lei – retrucou-me o americano; – os negros têm, na verdade, o direito de se apresentar nas eleições, mas se abstêm voluntariamente de comparecer.’ ‘Isso é muita modéstia da parte deles.’ ‘Oh, não é que se recusem a ir, mas temem ali ser maltratados. Entre nós ocorre às vezes faltar força à lei, quando a maioria não a apoia. Ora, a maioria está imbuída dos maiores preconceitos contra os negros, e os magistrados não sentem a força de garantir a estes os direitos que o legislador lhes conferiu’. ‘Com efeito! A maioria, que tem o privilégio de fazer a lei, quer ter ainda o de desobedecer a lei?’ (A Democracia na América)
Assim, também, incrédulo como Tocqueville, tenho dificuldade em acreditar que os advogados proletarizados não querem ver protegidos os seus direitos sociais e que a norma feita pela OAB não precisa ser cumprida pelos advogados da OAB.
O fenômeno da proletarização do advogado não é exclusivo do Brasil (embora aqui seja mais grave e acentuado), sendo também uma realidade em outros países desenvolvidos. Na França, o Judiciário não tem pestanejado em reconhecer o vínculo de emprego de advogados supostamente autônomos com grandes firmas de advocacia, conforme se vê desta decisão da Corte de Cassação daquele país.
Cássio Casagrande – Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
Fonte: Jota